02 novembro 2005

O Rosto de Shakespeare


Trecho que segue é do livro O Rosto de Shakespeare (tradução de Maria Alice Máximo; Record; 384 páginas; 54,90 reais) trama detetivesca que combina jornalismo investigativo, análise forense e história da arte em uma tentativa de desvendar um mistério sobre o maior dramaturgo da história, trecho disponivel também no site da Veja .
Os Principais Suspeitos
UMA PRECIOSA RELÍQUIA: foi isso que, em 1991, Lloyd Sullivan começou a suspeitar que a tela fosse. Decidiu então descobrir se aquele retrato era mesmo de William Shakespeare. Não que ele se lançasse a esse projeto de maneira séria; no início, foi só uma diversão. Aos cinqüenta e oito anos de idade, ele havia se aposentado cedo da Bell Canada, uma grande empresa de telecomunicações onde trabalhara trinta e cinco anos. Nos primeiros meses de aposentado ele passou bastante tempo no campo de golfe e em reuniões de grupos de orações da igreja católica carismática à qual pertencia. Mas ainda era um homem relativamente novo e tinha muita energia. Um belo dia ele tirou o velho Willy Shake do armário e lembrou-se da recomendação da mãe de "fazer alguma coisa" com o retrato. Mas fazer precisamente o quê? Por onde começar? A pergunta mais óbvia que precisava ser respondida era se a tela que herdara se parecia com outros retratos de Shakespeare. Mas Lloyd não levou muito tempo para fazer a descoberta que me deixaria tão perplexa dez anos depois: a de que, na verdade, não se sabe como era a fisionomia de Shakespeare. Nós dispomos de trinta e oito peças de teatro escritas por Shakespeare (incluindo-se aí possíveis colaborações suas); dispomos de dois poemas e de 154 de seus sonetos, de um depoimento que prestou à corte de justiça como testemunha e de registros de negócios- imobiliários e transações com grãos em Stratford. Mas não dispomos de uma única tela que nos revele, com certeza, como ele era quando escrevia suas grandes obras. Não sabemos como era o rosto que se debruçava sobre as folhas de papel escritas até a metade; o rosto que se voltava para o público como o Fantasma de Hamlet; a face do homem que se curvou em reverência à rainha Elisabete I depois da apresentação de As alegres comadres de Windsor, peça que, conta a lenda, a soberana lhe deu ordem para escrever. As duas únicas imagens de William Shakespeare aceitas quase unanimemente pelos estudiosos foram criadas depois de sua morte. Tampouco se dispõe de descrições do poeta em vida, feitas por contemporâneos seus. O texto mais antigo que nos descreve a aparência de Shakespeare data de cerca de 1680, mais de sessenta anos depois de sua morte em 1616. O relato foi escrito por John Aubrey, antiquário e ensaísta do século XVII, que para tanto procurou pessoas- que tivessem conhecido o poeta ou que tivessem informações sobre- ele. O texto faz parte do seu livro Brief Lives, publicado pos-tumamente em 1813. Os vizinhos de Shakespeare em Stratford disseram a Aubrey que Shakespeare "era um homem atraente, de belos traços: era uma excelente companhia e tinha um senso de humor sempre presente, agradável e suave". Não se pode dizer que essa seja uma descrição muito precisa. Se os leitores ou o público de teatro imaginam um rosto quando lêem ou assistem a uma peça de Shakespeare, certamente esse rosto será bem diferente do homem nada circunspeto que vi pela primeira vez naquele dia de maio em uma sala de jantar de uma casa de subúrbio em Ottawa. A face que você e eu provavelmente imaginamos como sendo a de Shakespeare é a que foi feita por Martin Droeshout e impressa na folha de título do Primeiro In-Folio de 1623. O In-Folio foi o resultado de um projeto memorial que levou muito tempo sendo planejado por dois dos amigos e antigos sócios de Shakespeare, John Heminges e Henry Condell. Sua amizade remontava a, pelo menos, 1595, quando os três já aparecem juntos em registros do Lord Chamberlain's Men. Em seu testamento, o poeta deixou uma quantia em dinheiro para que cada um deles e o ator Richard Burbage comprassem um anel de ouro como uma lembrança sua. Para o Primeiro In-Folio, Condell e Heminges reuniram trinta e seis peças de Shakespeare - metade das quais não havia sido publicada - sob o título Mr. William Shakespeare's Comedies, Histories, and Tragedies. Se não tivesse existido esse livro, vendido por cerca de uma libra cada exemplar e cuja primeira edição não deve ter ultrapassado 750 exemplares, grande parte da obra de Shakespeare certamente se teria perdido. O In-Folio teve quatro impressões, a última de 1685, e um total de aproximadamente três mil exemplares. Todas as edições levavam a mesma gravura com seu retrato, embora na quarta e última a figura já estivesse tão manchada que desse a impressão de que uma barba começava a nascer no rosto de Shakespeare. Na gravura feita por Droeshout, Shakespeare parece ser um homem de meia-idade, com uma calva no alto da cabeça e os cabelos lhe caindo sobre as orelhas. Está usando um doublet (um pesado gibão elisabetano) finamente bordado, com um colarinho duro branco que lhe emoldura o rosto. Tem o nariz comprido, lábios finos, olhos profundos e belas sobrancelhas arqueadas. É a face de um homem observador, refinado e inteligente - mas muito inexpressiva. Os historiadores da arte estão de acordo quanto ao retrato do Primeiro In-Folio representar um dos trabalhos menos bem-feitos de um artista não muito talentoso. Outras gravuras conhecidas de Droeshout, representando várias pessoas famosas, são mais nítidas e vívidas. Muitas perguntas acerca dessa imagem deixam intrigados os estudiosos de Shakespeare, mas a principal é a seguinte: por que He-minges e Condell, que àquela altura de suas carreiras certamente poderiam ter contratado um artista decente, haviam escolhido um entalhador medíocre para imortalizar seu amigo? Droeshout era um refugiado protestante nascido na Bélgica na década de 1560. Mudou-se para a Inglaterra ainda jovem com sua família flamenga. Talvez, como supôs o crítico vitoriano John Hain Friswell, "o entalhador fosse o artista mais à mão"2 - alguém que os atores já conhecessem. Outros levantaram a hipótese de Droeshout já haver feito antes, talvez a partir do modelo vivo, um esboço ou uma pintura que tomou por base para seu entalhe e que portanto fosse a pessoa naturalmente escolhida para o trabalho. Outros pesquisadores afirmam que Droeshout tomou por base para seu trabalho um esboço ou uma pintura da autoria de seu compatriota flamengo Gheeraerts. Há registros de trabalho conjunto dos dois e relatos de que Gheeraerts havia feito um retrato a óleo de Shakespeare3 - portanto Droeshout pode ter tido acesso, através de seu colega, a um original que lhe teria servido de base. A questão importante, porém, é se a gravura é um retrato fiel do poeta. A que consenso chegaram os estudiosos? Na verdade, a nenhum. Como muitos críticos já observaram, a figura tem uma porção de defeitos: um olho é mais baixo e maior que o outro e os cabelos estão em desarmonia com o rosto; o tronco é pequeno demais para a cabeça e os braços estão colocados de maneira estranha. A figura tem "o mal-acabamento de um desenho infantil", é "ruim e sem-graça";4 a vasta extensão da testa faz lembrar "uma horrível deformação hidrocefálica".5 Alguns estudiosos tentaram justificar a falta de talento de Droeshout dizendo que talvez ele tivesse trabalhado a partir de um desenho original malfeito. No século XIX a hipótese dominante era a de que ele havia se baseado em "um esboço simples feito por Burbage no teatro".6 (O ator Richard Burbage, um dos colegas mais próximos de Shakespeare, parece ter sido também um artista plástico de qualidade mediana.) Tenha ou não trabalhado a partir de um retrato original, o fato é que Droeshout não era um artista talentoso. Contudo o retrato feito por Droeshout tem um argumento simples e poderoso a seu favor: os amigos de Shakespeare o aceitaram. Heminges e Condell obviamente o aprovaram e o dramaturgo Ben Jonson escreveu esse breve tributo que aparece na página ao lado da que tem o retrato feito por Droeshout: The Figure, that thou here seest put, It was for gentle Shakespeare cut; Wherein the Graver had a strife With Nature, to out-do the life; O, could he but have drawn his wit As well in brass, as he hath hit His face, the Print would then surpass All, that was ever writ in brass. But, Since he cannot, Reader, look Not on his Picture, but his Book. A Figura que aqui podeis ver Representa o gentil Shakespeare; e nela o Gravador precisou lutar com a natureza Para recuperar-lhe a vida ah, que bom seria se ele pudesse ter lhe desenhado o espírito No metal assim como lhe fez o rosto. A gravura seria o que de mais lindo Já se riscou no cobre. Mas já que ele não pôde, Leitor, Não leia seu Retrato e sim seu livro. Como teve a aprovação de contemporâneos de Shakespeare, a gravura deve ter alguma semelhança com o dramaturgo nos últimos anos de vida. Para Ben Jonson, John Heminges e Henry Condell, aquela era uma imagem que identificaria William Shakespeare. A segunda das duas imagens mais aceitas como sendo do dramaturgo não é tão conhecida, mas tem argumentos igualmente fortes a favor de sua veracidade. Trata-se do busto que se encontra na parede norte, acima do túmulo de Shakespeare na capela-mor da Holy Trinity Church em Stratford-upon-Avon. O busto é obra de Geraert Janssen (seu nome costuma ser anglicizado para Gerard ou Garret Johnson), um entalhador em pedra cujo pai, um entalhador holandês, imigrou para Londres e montou uma oficina a pouca distância do Globe Theatre de Shakespeare. Gerard era o mais jovem dos Janssens entalhadores e foi, na avaliação de estudiosos, o menos talentoso do clã. O busto foi feito em 1620, quatro anos após a morte de Shakespeare. É de pedra calcária macia e azulada de Cotswold, entalhada e depois pintada, em tamanho natural, representando um homem de meia-idade da cintura para cima. Esse homem é calvo, à exceção de um tufo de cabelo cacheado acima de cada orelha, mas exibe um cavanhaque pontudo e um bigode encurvado. A face é carnuda e corada. Os cabelos são castanho-avermelhados e os olhos, cor de avelã. A figura do busto usa uma pesada jaqueta cor de vinho escuro com uma leve capa preta por cima, gola e punhos brancos - traje apropriado para um dignitário de uma cidade de província. As mãos são delicadas e longas; uma delas segura uma caneta de pena e a outra descansa sobre uma folha de papel. De um modo geral, o busto tem uma certa semelhança com a gravura de Droeshout - o feitio do rosto é semelhante, carnudo, com a testa ampla e a boca pequena -, a ponto de haver quem suponha que os dois artistas tenham trabalhado a partir do mesmo modelo. Esse retrato feito em pedra é uma peça típica da escultura funerária - formal, inexpressiva, o olhar perdido - e não agrada aos apreciadores de Shakespeare que fazem a peregrinação a Stratford para vê-la. Um pesquisador decepcionado vê na estátua "um açougueiro de porcos satisfeito consigo mesmo" e um outro se queixa de que aqueles "olhos inexpressivos e bochechas gordas não dão idéia do que se passa por dentro - de sua alma ou sua imaginação - e nos revela apenas um homem de sucesso mundano". É quase certo que o busto tenha sido encomendado e pago pela família de Shakespeare - por sua viúva, Anne Hathaway, ou suas filhas e seu genro, que certamente teriam sido capazes de patrocinar convenções sociais tais como a de adornar túmulos com monumentos fúnebres, e de fazê-lo com estilo. (O dramaturgo deixou para a mulher e o resto da família uma boa fortuna em imóveis, e seu genro, John Hall, era o respeitado médico da cidade.) E quer o escultor tenha ou não conhecido Shakespeare pessoalmente, a proximidade de sua oficina do Globe Theatre e de antigos companheiros de teatro de Shakespeare deu-lhe acesso a pessoas que se lembravam bem dele. "Por pior que seja, é a imagem mais universalmente aceita e amada do poe-ta", escreveu o crítico Friswell em 1864. Mas, como imagem de um gênio, o busto é ainda menos edificante que a gravura de Droeshout, e nenhuma das duas deixa entrever a expressão de inteligência viva que Ben Jonson tanto reverenciava. Ninguém que esteja à procura de indícios da grandeza do poeta ficará satisfeito com essas imagens suas. Essa conclusão serviu para fortalecer a convicção de Lloyd Sullivan de que a tela Sanders poderia ter uma importância imensa. Mas como provar que ela era verdadeira como (assim sua mãe lhe dissera) acreditaram todas as gerações de Sanders desde o início do século XVII? Sullivan precisaria aventurar-se pelo mundo da pesquisa de arte. Se Lloyd não entendia de Shakespeare quando iniciou seu projeto, entendia bem menos ainda de belas-artes e dos rituais de sua autenticação. Mas naquele verão de 1991, em uma reunião de família, ele mencionou por acaso aquela preciosidade incomum a seu primo Allan Sullivan, diplomata que então servia como cônsul-geral do Canadá em Nova York. O primo Allan havia herdado do pai vários quadros e os levara para avaliação à firma leiloeira Christie's, onde ele conheceu Lord Anthony Crichton-Stuart, especialista em mestres da pintura antiga. Allan ofereceu-se para falar com ele sobre o assunto. Agradecido, Lloyd entregou ao primo a papelada que havia reunido até então - as cartas, os testamentos e algumas fotocópias de livros de arte da biblioteca local. Lloyd esperou um ano pela resposta. Nesse meio-tempo, continuou suas leituras de biografias de Shakespeare e de estudos sobre o teatro elisabetano. Num belo dia de primavera de 1992, o primo Allan telefonou para dizer que Lord Crichton-Stuart estava indo a Ottawa para tratar de negócios com a National Gallery e que havia concordado em receber Lloyd em audiência, quando examinaria a tela Sanders e devolveria os documentos relativos a ela. "Aquilo para mim seria uma grande cartada", disse Lloyd. "Isto é, aquela seria minha primeira grande oportunidade de me informar sobre o retrato." No dia marcado Lloyd tirou o retrato do seu esconderijo no armário, colocou-o em uma pasta de vinil imitando couro e pôs a pasta na mala do seu Chrysler sedã branco. A caminho do centro, ele apanhou seus seguranças, dois sujeitos fortes conhecidos seus que jogavam no time de rúgbi local. Dirigiu-se ao estacionamento subterrâneo do chique Westin Hotel e em seguida ao saguão do hotel onde havia combinado encontrar-se com o especialista da Christie's. Deu instruções a seus guarda-costas para ficarem discretamente por ali e marchou bravamente para um aperto de mãos com Crichton-Stuart. Em seguida, os dois tomaram o elevador até o andar onde ficava o quarto do especialista. Lloyd desembrulhou Willy Shake e o colocou sobre a cama. Anthony Crichton-Stuart era um aristocrata garboso de cabelos escuros, como Lloyd esperava que fosse um especialista da Christie's. Ele aumentou a intensidade da iluminação do quarto e curvou-se sobre a tela. Lloyd balançava-se sobre os calcanhares e pôs-se a olhar, ansioso, para fora da janela. O especialista examinou minuciosamente a tela durante vários minutos infindáveis e deu então seu veredicto. O quadro estava em excelentes condições - não era obra de um dos Grandes Mestres, evidentemente, mas com grande certeza havia sido pintado no século XVII e, na verdade, não era nada mau. Ele calculou que seria possível obter uns cem mil dólares em um leilão, a despeito de quem estivesse ali retratado, mas que se fosse possível comprovar que era um retrato de Shakespeare a tela poderia valer milhões. Crichton-Stuart prometeu enviar informações sobre como proceder para autenticar a obra. Lloyd agradeceu-lhe muito e guardou a tela de novo na maleta. Já no saguão, fez um sinal com a cabeça para os jogadores de rúgbi e, discretamente exultante, colocou todos no carro novamente e voltou para casa. Lord Crichton-Stuart não se recorda dessa ocasião. Ele, na verdade, declinou de tratar do assunto e fez saber, através de um "porta-voz" que pedia mil desculpas, que todos os anos ele vê dezenas de quadros que têm histórias incomuns. E que um retrato genuíno dos tempos de James I, conquanto não fosse comum no Canadá, não era, para ele, uma raridade. Um retrato de Shakespeare não é algo que surja todos os dias, concordou o "porta-voz", porém Crichton-Stuart é um homem que vê uma grande quantidade de arte extraordinária e, afinal de contas, já quase dez anos haviam se passado desde o tal encontro. A avaliação animadora do especialista deu a Lloyd um novo gás. Ele ficou mais decidido do que nunca a provar que seu retrato era genuíno. O que havia começado como uma diversão aos poucos foi tomando cada vez mais do seu tempo: cada livro que ele lia parecia levá-lo a mais cinco e nenhum deles era muito fácil de ler. Mas não precisou ler muito para descobrir que o retrato Sanders tinha muitos companheiros, nem sempre de boa reputação. Ao longo do tempo têm surgido pilhas de retratos que seriam supostamente de William Shakespeare - cerca de 450 ao todo. Muitos deles tinham sido fraudes intencionais, mas alguns dispunham de sólidos pedigrees. Em outras palavras, o retrato Sanders tinha sérios competidores. Mesmo depois de retirados do ringue todos os retratos sabidamente fraudulentos, restava ainda um punhado de contendores com razoáveis reivindicações a terem sido pintados quando Shakespeare ainda vivia. Não se pode dizer que houvesse uma grande procura por retratos do Cisne de Avon quando ele ainda era vivo ou nos anos imediatamente posteriores à sua morte. Sua fama levou algum tempo para crescer e se espalhar. Porém o Primeiro In-Folio e suas edições subseqüentes desempenharam um importante papel no aumento da celebridade de Shakespeare. Por volta de 1660, não mais de cinqüenta anos após sua morte, os raros detalhes de sua vida pouco documentada começaram a ser floreados e transformados em lenda. Um número cada vez maior de admiradores passou a reivindicar todo tipo de conexões com ele: Shakespeare dormiu aqui, bebeu aqui, deu aulas aqui, tornou-se amigo de meu pai, tentou conquistar minha mãe. Alexander Leggatt, um estudioso de Shakespeare da Universidade de Toronto, explicou-me depois que é difícil se ter uma idéia da popularidade do dramaturgo no século XVII. Ao que parece, havia um misto de tremenda admiração, como a que lhe dedicava Ben Jonson, e um sentimento que, nas palavras de Leggatt, era algo como "O velho até que era bom, mas agora precisamos tocar para frente". Shakespeare era comparado com dramaturgos mais jovens como Francis Beaumont e John Fletcher (respectivamente vinte e quinze anos mais jovens que ele) e visto como levemente ultrapassado. Mas já em meados do século XVIII Shakespeare havia passado da obscuridade à reverência. Foi aclamado o poeta nacional da Inglaterra, e o culto à sua personalidade - bardolatria, como George Bernard Shaw viria a se referir a esse culto - havia chegado para ficar. Juntamente com o culto veio a indústria de Shakespeare da qual falou Stanley Wells. Os admiradores queriam uma imagem de seu semideus. "Uma face visível tornou-se necessária", escreve o historiador da arte David Piper. "O interesse pela imagem de Shakespeare, embora de intensidade e natureza variáveis ao longo do tempo, sempre existiu, e a demanda gerou uma inundação de imagens." Por volta de 1770, uma onda de retratos "originais" de Sha-kes-peare voltou a crescer e nos dois séculos que se seguiram surgiram dezenas deles. Esses retratos eram criados por artistas e negociantes de poucos escrúpulos e consumidos ansiosamente por uma -l-egião de compradores que não faziam muitas perguntas quanto a serem eles genuínos ou não. "Parecia ser uma regra geral entre negocian-tes de telas que todo rosto inglês que encontrassem, tendo cabelos castanhos, olhos escuros e uma ampla testa - características essas nada raras -, se transformaria em um novo retrato recém-descoberto do nosso grande poeta nacio-nal", lamentou J. Hain Friswell. Os novos retratos costumavam ter alguma semelhança com a gravura de Droeshout ou com o busto e isso era usado como argumento de sua autenticidade. No século XIX vários artistas desonestos especializaram-se em modificar retratos de outras pessoas para torná-los parecidos com Shakespeare. Consta que os mestres dessa arte, Edward Holder e F. W. Zincke, criaram pelo menos sessenta Shakespeares ao longo de duas décadas de suas carreiras artísticas. Diz-se que Holder, que também era negociante de quadros, modificava os retratos raspando parte da pintura original em lugar de simplesmente pintar por cima dela. Com o passar do tempo, não se sabe se por sadismo ou arrependimento, ele revelou seu método a compradores que nele haviam confiado, mas vários deles simplesmente ignoraram essa confissão, tão decididos estavam a acreditar que possuíam um retrato original. Zincke certa vez confessou a um negociante, de quem havia comprado uma tela com vários membros de uma família, que os separaria um por um e os transformaria a todos no dramaturgo Will. Em outra ocasião, Holder afirmou que sempre dava pistas suficientes a seus compradores. "Nunca tive grande vocação para enganar os outros como muitos em minhas condições têm feito. Tenho mulher e nove filhos para sustentar; e se tivesse me aproveitado como outros não seria o homem pobre que sou hoje." Holder e Zincke tinham muito orgulho de seu talento para a transmudação e certa vez demonstraram seu método a Abraham Wivell, um estudante da iconografia shakespeariana na década de 1820. Diante dos olhos de Wivell, Holder transformou com perfeição um retrato de um clérigo em um Oliver Cromwell imediatamente reconhecível. Zincke então o levou a uma loja de arte, que comprou o retrato por quatro libras. Holder e Zincke foram apenas os mais prolíficos de um grande número de falsificadores e embusteiros do século XIX. Marion Henry Spielmann, reconhecida especialista em imagens de Shakespeare no início do século XX, assim explicou a situação: "Havia outros atuando também, pois a dupla [Holder e Zincke] não dava conta da demanda. Além do mais, é preciso se lembrar que nem sempre era necessário um pintor para que se tivesse um retrato de Shakespeare. Bastava alguém que escrevesse o nome do poeta ou datas sugestivas em uma tela preexistente de maneira a dar a impressão de que aquele homem fosse ele. Se o truque fosse bem-feito, era o suficiente para satisfazer os mais crédulos, cujo único desejo era encontrar alguma tela - na verdade, qualquer uma - que lhes oferecesse uma oportunidade de dar vazão àquela adoração desarrazoada."11 Conta-se que em 1827 um tal Mr. Hilder "supriu famílias inteiras de Shakespeares (...) e tendo comprado um retrato de um membro do conselho da cidade com sua mulher, ele cruelmente separou o casal e transformou o conselheiro em Cromwell e a mulher em um magnífico Shakespeare". Um público que se satisfazia com a ficção coletiva aguar-dava as obras de Hilder, querendo acreditar que se tratasse de Sha--kespeare, como assinalou o historiador da arte William Pressly no trocadilho sobre os retratos que "were willed to be Will" ["queriam- que fosse de Will"]. A mulher do conselheiro pode não ter se transformado em um Shakespeare muito convincente, mas ao longo do tempo houve competidores que convenceram até mesmo os especialistas de sua época. Uns poucos, graças à coerência ou ao romantismo de sua história, resistiram até a segunda metade do século XX, quando foram desmascarados pela ciência moderna ou por estudiosos de nossa época. Dentre esses havia retratos de desconhecidos que se faziam passar por Shakespeare; retratos de outras pessoas que eram modificados de maneira a se parecerem com Shakespeare; e outros, simplesmente inventados para passarem por retratos de Shakespeare. Esses retratos que sobreviveram por tanto tempo merecem ser olhados com mais atenção, pois seu percurso no caminho da fama - e sua débâcle - mapearia a trajetória que aguardava o retrato Sanders. Imagine esses quadros pendurados na parede de uma longa galeria, uma dúzia de Shakespeares nos olhando de dentro de suas pesadas molduras. Estão dispostos em fila, começando pelos retratos "autênticos" que agora já se sabe serem falsos, até se chegar, na outra extremidade, aos dois únicos contendores - o Flower e o Chandos - sem contar o Sanders - que até agora sobreviveram às inquisições dos especialistas modernos. A caminhada é um exercício de evolução darwiniana das faces de Shakespeare, na qual apenas os mais fortes sobrevivem. (Ver essas imagens em "A galeria de retratos".) Faça uma primeira parada diante do retrato conhecido como o Zuccaro, porque por muito tempo se disse que era obra do artista italiano Federigo Zuccaro, pintor respeitado por seu trabalho em Florença e em Roma. Sabe-se que Zuccaro esteve na Inglaterra no final do século XVI e a ele foram atribuídos vários retratos do período elisabetano, inclusive da própria rainha Elisabete; do seu favorito, Robert Dudley, conde de Leicester; e de sua prima, Mary, rainha da Escócia. O Shakespeare de Zuccaro nos apresenta um homem de aparência misteriosa e romântica, com a testa alta e abaulada e pálpebras pesadas como na gravura de Droeshout, uma imagem ousada e bem adequada ao gosto do século XIX. A tela surgiu em Bath no início do século XIX e foi imediatamente proclamada um retrato do dramaturgo que estava perdido desde 1602. Essa tela gozou por muito tempo da fama de representar o rosto de Shakespeare; foi adquirida como retrato autêntico pintado em vida pela Folger Shakespeare Library em 1926. De fato, o estilo faz lembrar as pinturas inglesas de Zuccaro, e o modelo usava um colarinho branco muito elaborado que imitava os colarinhos usados pelos membros da corte da rainha pintados por Zuccaro. O argumento mais convincente é a inscrição no verso "Guglielm Shakespeare". Porém um pequeno trabalho de detetive de historiadores da arte no século XX foi o suficiente para desmascarar a farsa. Descobriu-se que Federigo Zuccaro passou apenas seis meses na Inglaterra em 1575, quando Shakespeare completou onze anos. Zuccaro precisaria ter sido dotado de poderes de clarividência que, somados a seu talento de pintor, lhe permitissem antecipar a futura grandeza de um menino de escola desconhecido numa cidadezinha do interior e imaginar como ele seria aos trinta anos de idade. Em 1988 uma restauração do retrato de Zuccaro revelou um autêntico retrato elisabetano que havia sido pintado por cima no século XIX para parecer um retrato de Shakespeare. (O termo "elisabetano" aplica-se ao período do reinado de Elisabete I, que terminou com sua morte em 1603. Seu sobrinho, James VI da Escócia, sucedeu-a como James I da Inglaterra, dando início à era jacobita.) Destino semelhante foi o do segundo quadro da fila, uma pintura conhecida como o Grafton, em referência ao duque de Grafton a quem ele teria pertencido no século XVIII. O Grafton veio a público em meados da década de 1880, quando pertencia a uma família do norte da Inglaterra. Ele nos mostra um rapaz romântico de rosto arredondado, vestido de maneira adequada a um jovem poeta elisabetano. A argumentação a seu favor baseia-se em duas inscrições cruciais. Na parte da frente lê-se "Æ SVÆo24 1o5o8o8", indicando que o modelo tinha vinte e quatro anos em 1588. No verso lê-se "W + S". William Shakespeare de fato tinha vinte e quatro anos de idade em 1588. Mas nessa tenra idade não havia ainda escrito qualquer de suas obras que o tornariam conhecido e, na verdade, estaria trabalhando como aprendiz de fabricante de luvas na loja do pai em Stratford. Com toda certeza ainda não teria condições financeiras para ter seu retrato pintado com aquelas roupas luxuosas. A seguir, paramos diante do Felton, assim chamado porque um tal Samuel Felton, de Shropshire, o comprou por cinco guinéus em maio de 1792. Felton, que visitava Londres naquela ocasião, certamente deixou-se impressionar pela inscrição ("Guil. Shakespeare, 1597. R.N.") e pela expressão romântica e carregada de emoção do poeta. O modelo é magro e pálido, tem olhos fundos e seus cabelos só iniciam a partir de metade da cabeça para trás. Dois anos depois de Felton o comprar, em 1794, o estudioso e pesquisador de Shakespeare George Steevens declarou, confiante, que aquele era o único retrato verdadeiro de Shakespeare em vida, que era precisamente o original a partir do qual Martin Droeshout trabalhou. O retrato passou por vários donos até ser comprado pelo colecionador Henry Clay Folger em 1922, que pretendia incluí-lo em seu museu. Ao longo de todo esse tempo ele foi defendido por partidários de Steevens e foi objeto de zombaria - chamado, por exemplo, de "alemão cheirador de rapé" - por parte de seus rivais. O Felton tem, de fato, alguma semelhança com a gravura do Primeiro In-Folio, porém não resistiu à análise de historiadores de arte modernos. Há evidência de ter sido bastante pintado por cima, embora as feições permaneçam basicamente as mesmas da pintura original. Entretanto a cabeça é diferente demais para ter sido pintada a partir do original de Droeshout, e a gola do modelo foi bastante modificada para se assemelhar às grandes golas achatadas de 1597. Já não resta dúvida de que o Felton seja uma obra do século XVIII - só não se sabe se é um embuste desde o início ou se é a adulteração de um retrato que já existia. O seguinte da fila é o Janssen, uma tela que, como o Felton, foi modificada com a intenção de enganar. Esse retrato passou a ser considerado de Shakespeare quando um colecionador o adquiriu em 1770. Recebeu esse nome por ser atribuído a Cornelius Janssen - originalmente Cornelius Johnson -, um artista nascido na Inglaterra de pais holandeses que trabalhou em Londres na primeira metade do século XVII. Durante muitos anos o retrato de Janssen e o de Chandos foram considerados os dois únicos pretendentes sérios ao título de retrato de Shakespeare feito em vida. Assim como o Zuccaro, o Shakespeare de Janssen tem a elegância refinada que um público do século XVIII esperaria de Shakespeare. O modelo tem feições delicadas e a testa lisa e exibe um belo colarinho com acabamento em renda. Esse retrato tem, igualmente, uma inscrição, essa no canto superior esquerdo: "Aete 46/ 1610" (modelo aos quarenta e seis anos em 1610). Os historiadores da arte não chegaram a levantar questões sérias sobre a autenticidade do retrato de Janssen até a década de 1940, quando pesquisas mostraram que o jovem Cornelius Janssen era apenas um adolescente em 1610 e que foi para a Holanda estudar quando ainda muito jovem. Só começou a trabalhar em Londres em 1618, portanto não poderia ter pintado aquele quadro com o modelo vivo. Para esse retrato, portanto, o que falta é um artista. As roupas do modelo também são problemáticas. Seu colarinho de renda e sua rica jaqueta seriam- típicas de um cortesão ou de um nobre, não de um dramaturgo da classe média - embora, como veremos adiante, esse não chegue a ser um problema insuperável. O que mais o condenou, entretanto, foram os exames de raios X que sugerem ter havido alteração da data que aparece no canto superior esquerdo. E, para completar, uma restauração revelou que o início do couro cabeludo foi retocado para formar a ampla calva shakespeariana. Hoje em dia acredita-se que o retrato seja do escritor Sir Thomas Overbury; o modelo tem grande semelhança com o único retrato de Overbury que se conhece. O último dos pretendentes, cujo caso pode agora ser abandonado com segurança, é um retrato pintado a óleo sobre tela por um artista desconhecido, retrato esse que foi "descoberto" em 1847 pelo reverendo Clement Usill Kingston, que o tornou público em Ashbourne, Derbyshire. Quando o bom reverendo revelou ao mundo seu retrato, este estava inscrito e datado "ÆTATIS SVÆ. 47. Ao 1611" e exibia um Shakespeare vitoriano, com a calva remanescente da gravura de Droeshout. O Ashbourne teve uma longa carreira como retrato de Shakespeare pintado em vida - mais de cem anos. Em 1937 um exame de raios X lançou dúvidas sobre sua autenticidade ao descobrir um retrato anterior sob a imagem visível. Mas foi somente em uma restauração feita em 1979 que se constatou ter havido uma adulteração para que o retrato parecesse ser de Shakespeare. A linha onde inicia o cabelo do modelo havia recuado de modo a se parecer com a gravura de Droeshout e a data havia sido alterada de 1612 para 1611 (quando o dramaturgo completou quarenta e sete anos de idade). A restauração revelou também um brasão e uma data que identificam o modelo original como tendo sido Sir Hugh Hamersley, um contemporâneo de Shakespeare que foi prefeito de Londres. A transformação de Hamersley em Shakespeare parece ter sido feita pelo próprio reverendo Kingston, que pintava também e que teve um belo lucro com a venda da tela. Já próximo ao final da galeria encontram-se os dois quadros - sem considerar o Sanders - cujos casos ainda não foram dados por encerrados. O pretendente mais fraco é o retrato Flower, que surgiu na Inglaterra em 1840. O Flower é pintado a óleo em um painel de carvalho e tem a inscrição no canto superior esquerdo: "Willm Shakespeare 1609". Quando Edgard Flower, da rica dinastia de produtores de cerveja de Stratford, o adquiriu, sugeriu que teria sido nele que Martin Droeshout baseou-se para fazer sua gravura. De fato, a semelhança é bem grande: a mesma testa ampla, as mesmas pálpebras caídas, a mesma posição enviesada do modelo. Apesar de entusiasticamente aceito em meados do século XIX como retrato de Shakespeare em vida, o Flower perdeu prestígio no início do século XX. Os críticos consideraram a inscrição em caligrafia cursiva recente demais para ser daquela época e acusaram o quadro de ser uma cópia óbvia da gravura de Droeshout, que exibe até mesmo os erros do processo de elaboração da gravura. Em 1966 um exame de raios X do painel revelou que o retrato foi pintado por cima do que parece ser uma Madona com o Filho e São João. Porém, como no caso de Ashbourne, os raios X não eliminaram automaticamente a credibilidade do Flower. Os artistas de poucos recursos financeiros usavam freqüentemente telas e painéis antigos. O quadro, que está atualmente na galeria do Royal Shakespeare Theatre em Stratford-upon-Avon, não foi submetido a novas análises científicas. Na melhor das hipóteses, os curadores responsáveis por sua restauração parcial acharam que o retrato de Shakespeare teria sido pintado no século XIX. Em 1986 uma dupla de pesquisadores americanos sugeriu que ele tivesse sido pintado "em um ateliê em Londres no período jacobita e que o pintor flamengo e seu assistente usaram como painel uma pintura religiosa que não teria comprador".14 Essa hipótese deu novo fôlego à idéia de que o jovem Droeshout havia usado aquela tela como base para seu trabalho. No caso do Flower, o júri ainda não deu o veredicto final. Por fim chegamos diante do retrato Chandos. A tela hoje em dia se encontra na National Portrait Gallery em Londres, a mais recente de uma lista de proprietários que afirmam ser aquele um retrato de Shakespeare desde que James Brydges, posteriormente duque de Chandos, o adquiriu em 1747. Na Galeria ele é apresentado como um genuíno retrato feito em vida e disputa com o Droeshout o título de retrato mais reproduzido de Shakespeare. No século XIX ele serviu de modelo para dezenas de outras telas, minia-turas e bustos. A obra é atribuída a John Taylor, que morreu em 1651 e tinha ligações com a família Droeshout de gravuristas. Taylor pertencia à Painter-Stainers Company, a guilda dos artistas plásticos da qual Droeshout também era membro e, portanto, o conhecia. Além disso, Taylor freqüentava a mesma igreja que o sobrinho de Droeshout, John.16 Portanto Taylor pode ter tido acesso a uma obra original para pintar sua tela. Os pesquisadores de arte aceitam, tomando por base os materiais- empregados (óleo sobre tela) e o estilo no qual foi pintado, que o Chandos tenha sido pintado por volta de 1610. O modelo usa uma pesada jaqueta escura e a gola de sua camisa está desamarrada; pesquisadores de indumentária dizem que tanto a roupa como o estilo do cabelo estão de acordo com o que usaria um homem de letras naquele período. Seu brinco de argola em ouro pode ter sido um tanto ousado para um homem de quarenta e seis anos, mas existe um retrato da mesma época no qual o ator Nathaniel Field, mais jovem que o dramaturgo, exibe um brinco semelhante.17 Os testes científicos nada provaram contra o Chandos. Uma chapa de raios X da tela revela que houve uma restauração grosseira que não altera muito a pintura original, enquanto que uma fotografia infravermelha mostra apenas um leve retoque na têmpora direita do modelo, consistente com uma tentativa posterior de restauração, não de adulteração. Se ele não fosse tão diferente da gravura de Martin Droeshout, poderia reivindicar a condição de lhe ter servido de modelo. O Chandos vem sendo apresentado como retrato de William Shakespeare há mais de 250 anos, entretanto o argumento a favor de sua autenticidade baseia-se no fato não comprovado de ele ter pertencido ao dramaturgo e administrador de teatro Sir William Da-venant, nascido em 1606. Segundo John Aubrey, um dos primeiros biógrafos de Shakespeare, Davenant afirmou, em várias oportunidades, ser afilhado de Shakespeare ou ser seu filho ilegítimo ou ambas as coisas. Até 1747 a história do Chandos baseia-se na tradição oral. A partir dessa época, já havia bons motivos para se fazer passar uma tela antiga por um retrato do dramaturgo já então famoso. Além do mais, dentre todos os retratos que reivindicam autenticidade, o Chandos é o único que em nada se assemelha à gravura do Primeiro In-Folio ou ao monumento de Stratford. Ele exibe um homem de rosto estreito e cabelos escuros que alguns críticos do século XIX rejeitaram por sua improvável "fisionomia judaica". O Chandos pode ser o pretendente mais sério, porém não se pode dizer que sua situação seja sólida. Assim termina nosso tour dos principais pretendentes no final do século XX. E dentre todos, apenas o Flower e o Chandos podem ainda reivindicar autenticidade. Além desses dois, as pessoas que procuram encontrar sinais de genialidade na face de Shakespeare precisam mesmo recorrer ao busto inexpressivo de Geraert Janssen ou à gravura nada talentosa de Martin Droeshout. O retrato pertencente à família Sanders, portanto, era apenas o mais recente de uma longa fila de pretensos retratos de William Shakespeare em vida. Além da história contada em sua família e de uma etiqueta já ilegível, Lloyd Sullivan de nada mais dispunha para provar sua crença, a não ser a opinião de Anthony Crichton-Stuart de que a pintura datava do século XVII. Assim sendo, pouco depois de seu encontro com o augusto especialista da Christie's em 1991, Lloyd decidiu buscar apoio no mundo da arte. Por intermédio de seu advogado Les Bunning, ele entrou em contato com Michael Pantazzi, então curador adjunto de Arte Européia na National Gallery of Canada em Ottawa. Ele disse a Pantazzi que possuía uma tela, supostamente de Shakespeare, que cederia à Gallery em empréstimo por período longo. Pantazzi, naturalmente, teve suas dúvidas. No dia 1º de março de 1991, Bunning escreveu-lhe explicando que, segundo a história da família, o seu ancestral "que pintou a tela era membro da trupe de Shakespeare, embora eu suponha que isso jamais possa ser comprovado". A essa carta ele anexou um artigo sobre o quadro publicado em 1909 em uma revista de arte e, ainda, fotocópias coloridas do retrato. Três semanas depois um Pantazzi cauteloso escreveu de volta. Ele declinava delicadamente a oferta de empréstimo, explicando que a galeria raramente recebia telas nessa base devido ao custo do seguro. Outrossim, advertia para o fato de só haver três retratos - o Droe-shout, o monumento de Stratford e o Chandos - com alguma pretensão de autenticidade. "Como muito depende de se tratar ou não de um retrato de Shakespeare, talvez fosse melhor estabelecer primeiramente o status da tela." Sugeriu que Lloyd pensasse na possibilidade de tentar emprestá-lo à Agnes Etherington Art Centre em Kingston, Ontário, pertencente à Queen's University, que tem um excelente programa de conservação. E a National Portrait Gallery de Londres poderia ser capaz de lançar alguma luz sobre o retrato Sanders, após o que a Christie's ou a Sotheby's, outra respeitável casa leiloeira, talvez pudesse calcular-lhe o valor. À sua resposta Pantazzi gentilmente anexou uma pilha de fotocópias de artigos sobre retratos de Shakespeare. E assim terminou a história com o museu nacio-nal de arte do Canadá. Então, passado um ano de seu encontro com Lloyd, Lord Crichton-Stuart, o especialista da Christie's, cumpriu sua promessa de enviar a Lloyd alguma orientação sobre o que fazer com sua tela. Enviou uma carta contando-lhe de um contato que fizera na National Portrait Gallery de Londres. Desculpando-se profusamente pela demora, ele enviou o nome de Malcolm Rogers, o diretor-adjunto daquela instituição. "Ele deve ser capaz de ajudá-lo de fato a identificar se sua tela é ou não um retrato de Shakespeare." Concluiu sua breve epístola desculpando-se novamente e acrescentando, em tom amistoso: "Estou certo de que o senhor já até se esqueceu do nosso encontro!" Não havia se esquecido. Mais determinado do que nunca, Lloyd pediu a seu advogado que escrevesse a Malcolm Rogers descrevendo o retrato que estava com sua família havia tanto tempo. "Entretanto a documentação que comprova isso só existe a partir do século XIX. Não há dúvida de que se trata de uma tela muito antiga, porém desconheço a existência de métodos científicos para a definição acurada de sua idade." A carta disse também que Lloyd estava interessado em ceder por empréstimo ou vender a tela, mas que antes gostaria de "obter informações quanto à sua idade, seu valor e sua autenticidade". No dia 5 de junho Lloyd recebeu uma resposta sucinta: a obra "parece se tratar de um retrato autêntico do final do século XVI ou do início do século XVII, porém não vejo razão alguma para crer que ela represente Shakespeare. Esse é o único problema. Uma casa especializada ou um marchand poderá orientá-lo quanto ao valor". Naquela ocasião Lloyd ainda não sabia que para a Gallery retratos atribuídos ao dramaturgo eram uma espécie de praga. "Recebemos um novo Shakespeare a cada ano e meio, aproximadamente", disse-me mais tarde Catharine MacLeod, da Gallery, quando a entrevistei para The Globe. A curadora de arte dos séculos XVI e XVII disse-me ainda que, invariavelmente, acabava-se descobrindo que eram falsificações de qualidades variáveis, ou então boas telas antigas sem qualquer comprovação de serem retratos de Shakespeare. Quando Malcolm Rogers recebeu a carta de Lloyd falando-lhe de mais um "novo" Shakespeare que havia surgido em uma pequena cidade da antiga colônia, ele e seus colegas curadores certamente não lhe deram o mesmo crédito. Lloyd havia recebido respostas desencorajadoras - rejeições, na verdade - das duas primeiras instituições de arte que abordou. Porém ele é um homem determinado, e a fé que depositava em seu quadro não foi abalada. Em lugar de seguir os conselhos dos especialistas, redobrou seus esforços. Seu projeto para ocupar o tempo de aposentado deixara de ser um passatempo e passara a ser uma missão para provar que estava certo. Estava decidido a mostrar que o retrato Sanders não era apenas mais uma pintura falsificada do século XVIII de um nobre qualquer. Mas logo se deparou com outro obstáculo. Ao navegar através de livros de história da arte e de biografias de Shakespeare, encontrou freqüentemente a seguinte afirmativa categórica: Shakespeare, filho de um fabricante de luvas de uma pequena cidade do interior e que depois se tornara dramaturgo, jamais teve seu retrato pintado em vida. Essa era uma idéia que Lloyd achava difícil aceitar. Shakespeare não era o escritor mais famoso do mundo? Não foi um dramaturgo de grande popularidade em sua época? Certamente teria sido natural que alguém pintasse seu retrato. Para quem vive na era dos paparazzi, seria impensável que ninguém tivesse se interessado em retratar o rosto daquele homem. Porém, à medida que Lloyd foi aprendendo mais acerca da vida de Shakespeare e de seu mundo, começou a encontrar alguns fortes argumentos contra a existência de um retrato. O primeiro deles tem a ver com a classe social de Shakespeare: o dramaturgo não pertencia a um estrato social suficientemente elevado para mandar fazer um retrato seu ainda em vida. De acordo com essa linha de raciocínio, os membros da classe média inglesa só começaram a encomendar retratos seus nos últimos anos de vida de Shakespeare. Até o final do reinado de Elisabete, somente os abastados, a nobreza e, em particular, aqueles que eram formalmente apresentados à monarca mandavam pintar seus retratos. Não os atores e dramaturgos, figuras que habitavam a decadente Margem Sul do Tâmisa. Nem mesmo aqueles cujo sucesso os levaria a apresentar-se diante da rainha. Shakespeare divertia a corte, porém jamais foi formalmente apresentado a ela e tampouco admitido àquele estrato da sociedade. Mesmo em seus últimos anos de vida em Londres, quando sua fama atingiu o auge, ela não era suficiente para que ele tivesse seu retrato pintado. Surgiu um segundo problema: na época de Shakespeare um artista jamais iniciava uma tela sem antes ter recebido pelo menos uma parte do pagamento por ela. A pintura de retratos era uma atividade profissional que exigia alta técnica. A maioria dos que a praticavam era constituída de emigrantes holandeses - os holandeses eram bem mais talentosos nessa arte do que os ingleses de então - e eles tinham uma guilda própria. Até mesmo os mais simples dos retratos custavam caro. Se o cliente quisesse algo sofisticado, como uma tinta azul brilhante feita de lápis-lazúli importado do Afeganistão, bem, nesse caso teria que pagar a mais por isso. Shakespeare, como nos mostram seus registros financeiros que chegaram até nós, era bastante cuidadoso com seus shillings. Andrew Gurr - professor de literatura inglesa na Reading University na Inglaterra e um dos diretores da restauração do Globe Theatre de Shakespeare - contou-me posteriormente que Shakespeare era "um notório unha-de-fome". Quando o dramaturgo retirou-se para Stratford, uma das primeiras coisas que fez foi processar um homem por uma dívida de cinco libras esterlinas contraída com seu pai dezesseis anos antes. Certamente não se dispõe de qualquer registro de alguma extravagância sua. Se Shakespeare ou um patrono ou um admirador de fato encomendou um retrato, não existe qualquer documentação relativa à transação: conquanto se disponha de um bom número de recibos de pinturas italianas desse período, são poucos os recibos ingleses que sobreviveram ao passar do tempo. Da mesma forma, são poucos os inventários póstumos - lista dos bens preparada quando da partilha - dessa época que fazem alguma referência a pinturas. Tampouco eram esses retratos mencionados em testamentos. (Nenhum dos livros de Shakespeare ou documentos de referência é citado em seu testamento, mas acredita-se que eles tenham sido relacionados em um inventário póstumo que se perdeu.) Além do entusiasmado Gullio, como Stanley Wells se refere a ele em sua peça sobre o Parnaso, que sonha com um retrato do "Doce Mestre Shakespeare" em seu ateliê, em nenhum outro registro encontramos qualquer referência a um retrato de Shakespeare pintado em vida. E, se de fato existiu um retrato do "Doce Mestre Shakespeare" já em 1599 ou 1600, que fim teria levado? Os historiadores da arte podem apenas fazer suposições. Até o final do século XVI a maioria das pinturas era feita sobre madeira; no início do século XVII a tela tornou-se mais comum. Pinturas em tela são muito mais vulneráveis a avarias e a destruição. Talvez tenha sido feita uma gravura quando Shakespeare ainda era vivo e essa gravura tenha sido impressa em série - o que equivaleria, de certa forma, a uma foto de paparazzi. Se assim foi, teria sido impressa em papel, ainda mais frágil. Se o retrato do Parnaso ou outro algo semelhante chegou a existir, ou não resistiu ao tempo ou encontra-se escondido em algum sótão empoeirado ou debaixo da cama de alguma avó.

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