20 fevereiro 2007

Os Desafios da Terapia


Como diz o subtítulo, destinado a jovens terapeutas, Os desafios da terapia é uma reunião de recomendações que abrange muitos aspectos do atendimento psicoterápico individual e algumas questões referentes às terapias de grupo.Sem se aprofundar nos temas, Irvin Yalom faz, entre outros tópicos, uma síntese bastante convincente da importância da análise do próprio terapeuta, da estrutura da transferência e de como ela reflete as demais relações do paciente, das dificuldades mais comuns do atendimento, da importância dos atos em contraposição às palavras, de como não se devem tomar decisões pelo paciente, da importância da análise dos sonhos. Irvin é o mesmo autor de Quando Nietzsche Chorou. Este marca a volta dos trechos de livros publicados no blog!

Leia a seguir um trecho do livro:
Está escuro. Venho ao seu consultório, mas não consigo encontrar você.
O consultório está vazio. Entro e olho para todos os lados. A única coisa ali
é o seu chapéu-panamá. E está todo coberto com teias de aranha.
Os sonhos dos meus pacientes mudaram. As teias de aranha cobrem o meu
chapéu. Meu consultório está escuro e deserto. Não posso ser encontrado em lugar
nenhum.
Meus pacientes se preocupam com a minha saúde: Estarei presente na longa
trajetória da terapia? Quando saio de férias, eles fi cam com medo de que eu
nunca volte. Imaginam que estarão presentes ao meu funeral ou que visitarão
meu túmulo.
Meus pacientes não me deixam esquecer que eu envelheço. Mas estão apenas
fazendo o seu trabalho: Não lhes pedi que revelassem todos os sentimentos,
pensamentos e sonhos? Mesmos novos pacientes em potencial se juntam ao coro
e, sem exceção, me cumprimentam com a pergunta: “O senhor ainda está aceitando
pacientes?”
Um dos nossos principais modos de negação da morte é uma crença no especialismo
pessoal, uma convicção de que somos livres da necessidade biológica e de
que a vida não lida conosco da mesma maneira severa com que lida com todas as
outras pessoas. Lembro-me de ter consultado, há muitos anos, um optometrista
por sentir a visão reduzida. Ele perguntou minha idade e depois reagiu: “Quarenta
e oito, hein? Sim, senhor, está bem dentro do prazo!”
É claro que eu sabia, conscientemente, que ele estava inteiramente certo, mas
um grito brotou bem lá do fundo: “Que prazo? Quem é que está no prazo? É
perfeitamente correto que você e os outros estejam no prazo, mas certamente
não eu!”
E, portanto, é desalentador perceber que estou entrando numa era de vida
denominada tardia. Meus objetivos, interesses e ambições estão mudando de uma
maneira previsível. Erik Erikson, no seu estudo do ciclo da vida, descreveu esse
estágio tardio da vida como generatividade, uma era pós-narcísica em que a atenção
se transfere da expansão de si próprio para os cuidados e preocupação pelas
gerações subseqüentes. Pois bem, por já ter passado dos setenta, posso apreciar
a clareza da visão de Erikson. Seu conceito de generatividade me parece correto.
Quero passar adiante aquilo que aprendi. E o mais rapidamente possível.
Mas oferecer orientação e inspiração para a próxima geração de psicoterapeutas
é extremamente problemático, hoje, porque o nosso campo se encontra numa
grande crise. Um sistema de assistência médica impulsionado pela economia exige
uma modifi cação radical no tratamento psicológico, e a psicoterapia agora é
obrigada a ser ágil – isto é, acima de tudo, econômica e, forçosamente, breve, superfi
cial e inconsistente.
Preocupa-me onde a próxima geração de psicoterapeutas efi cazes receberá o
treinamento. Não nos programas de residência em psiquiatria. A psiquiatria está
prestes a abandonar o campo da psicoterapia. Jovens psiquiatras são forçados a
se especializar em psicofarmacologia porque as empresas de assistência médica
gerenciada atualmente reembolsam os gastos com psicoterapia somente se praticada
por clínicos de baixa remuneração (em outras palavras, minimamente
qualifi cados). Parece certo que a atual geração de clínicos psiquiatras, habilitados
tanto na psicoterapia dinâmica quanto no tratamento farmacológico, é uma espécie
em extinção.
E quanto aos programas de treinamento em psicologia clínica – a escolha óbvia
para preencher o vazio? Infelizmente, os psicólogos clínicos enfrentam as mesmas
pressões de mercado e a maioria das escolas de psicologia que oferece programas
de doutorado reage com o ensino de uma terapia orientada por sintomas, breve e,
portanto, reembolsável.
Portanto, preocupo-me com a psicoterapia – sobre como ela poderá ser deformada
pelas pressões econômicas e empobrecida por programas de treinamento
radicalmente abreviados. Ainda assim, sou otimista e espero que, no futuro, uma
coorte de terapeutas oriundos de uma variedade de disciplinas educacionais (psicologia,
aconselhamento, assistência social, aconselhamento pastoral, fi losofi a clínica)
continue a se dedicar a um rigoroso treinamento em nível de pós-graduação
e, mesmo sob a pressão da realidade das empresas de seguros e assistência médica,
encontre pacientes desejosos de crescimento e mudança dispostos a assumir
um compromisso aberto com a terapia. É para esses terapeutas e esses pacientes
que escrevo Os desafi os da terapia.
Ao longo destas páginas, advirto os estudantes contra o sectarismo e sugiro
um pluralismo terapêutico no qual intervenções efetivas são extraídas de várias
abordagens terapêuticas diferentes. Ainda assim, na maioria das vezes, eu trabalho
com base em um referencial (sistema de referência) interpessoal e existencial.
Portanto, a maior parte dos conselhos que se seguem deriva de uma ou outra
destas duas perspectivas.
Desde o momento em que entrei no campo da psiquiatria, tenho dois interesses
permanentes: terapia de grupo e terapia existencial. São interesses paralelos,
porém distintos: não pratico “terapia de grupo existencial” – de fato, não sei o que
isso seria. Os dois modos são diferentes não apenas por causa do formato (isto é,
um grupo de aproximadamente seis a nove membros contra um cenário a dois,
com terapeuta e paciente frente a frente para a terapia existencial), mas pelo seu
referencial fundamental. Ao atender pacientes em terapia de grupo, eu trabalho
a partir de um referencial interpessoal e tomo como premissa que os pacientes
entram em desespero por causa de sua incapacidade de desenvolver e sustentar
relacionamentos interpessoais gratifi cantes.
Entretanto, quando opero partindo de um referencial existencial, tomo como
premissa algo bem diferente: os pacientes entram em desespero como resultado
de uma confrontação com fatos cruéis da condição humana – os “dados conhecidos”
da existência. Já que muito do que é oferecido neste livro deriva de um
referencial existencial desconhecido de muitos leitores, uma breve introdução é
desejável.
Defi nição de psicoterapia existencial: psicoterapia existencial é uma abordagem
terapêutica dinâmica que se concentra nas questões enraizadas na existência.
Para ampliar esta defi nição concisa, quero esclarecer a expressão “abordagem
dinâmica”. “Dinâmica” tem uma defi nição leiga e outra técnica. O signifi cado leigo
de “dinâmica” (derivada do radical grego dynasthai, ter poder ou força), que
implica vigor ou vitalidade (a saber, dínamo, um atacante dinâmico de futebol
americano ou um orador político dinâmico), obviamente não é relevante aqui.
Porém, se fosse esse o signifi cado aplicado à nossa profi ssão, onde estaria o terapeuta
que se declararia ser outra coisa que não terapeuta dinâmico, em outras
palavras, um terapeuta vagaroso ou inerte?
Não, uso “dinâmico” em seu sentido técnico, que retém a idéia de força, mas
tem sua raiz no modelo de funcionamento mental de Freud, que postula que forças
em confl ito no interior do indivíduo geram seu pensamento, sua emoção e seu
comportamento. Além do mais – e este é um ponto crucial –, estas forças confl itantes
existem em diversos níveis de percepção; de fato, algumas são inteiramente
inconscientes.
Portanto, a psicoterapia existencial é uma terapia dinâmica que, assim como as
várias terapias psicanalíticas, pressupõe que as forças inconscientes infl uenciam
o funcionamento consciente. Entretanto, ela se separa das várias ideologias psicanalíticas
quando formulamos a seguinte pergunta: qual é a natureza das forças
internas confl itantes?
A abordagem da psicoterapia existencial postula que o confl ito interno que
nos atormenta brota não somente da nossa luta com os ímpetos instintivos reprimidos
ou adultos signifi cantes internalizados ou fragmentos de memórias traumáticas
esquecidas, mas também de nosso confronto com os “dados conhecidos” da
existência.
E quais são esses “dados conhecidos” da existência? Se nos permitirmos examinar
e selecionar – ou “categorizar” – os assuntos cotidianos da vida e refl etir
profundamente sobre nossa situação no mundo, chegaremos inevitavelmente às
estruturas profundas da existência (as “ultimate concerns” – preocupações últimas
ou supremas –, para usar o termo do teólogo Paul Tillich). Quatro preocupações
últimas, em minha opinião, assumem grande destaque para a psicoterapia: morte,
isolamento, signifi cado na vida e liberdade. (Cada uma dessas preocupações será
defi nida e discutida numa seção determinada.)
Os estudantes freqüentemente me perguntam por que não defendo os programas
de capacitação em psicoterapia existencial. O motivo é que nunca considerei
a psicoterapia existencial uma escola ideológica autônoma, bem-defi nida. Em vez
de tentar desenvolver currículos de psicoterapia existencial, prefi ro suplementar o
ensino de todos os terapeutas dinâmicos bem-qualifi cados e capacitados, aumentando
sua sensibilidade às questões existenciais.

Processo e conteúdo
Que aparência tem na prática a terapia existencial? Para responder a essa
pergunta, é necessário atentar tanto ao “conteúdo” quanto ao “processo”, os dois
principais aspectos do discurso terapêutico. “Conteúdo” é simplesmente o que se
diz – as palavras faladas precisas, as questões substantivas abordadas. “Processo”
se refere a uma dimensão inteiramente diferente e imensamente importante: o
relacionamento interpessoal entre o paciente e o terapeuta. Quando perguntamos
sobre o “processo” de uma interação, queremos dizer: o que as palavras (e também
o comportamento não-verbal) nos dizem sobre a natureza das relações entre
as partes que participam da interação?
Se as minhas sessões terapêuticas fossem observadas, muitas vezes o espectador
poderia procurar em vão por longas discussões explícitas sobre morte, liberdade,
signifi cado ou isolamento existencial. Tal conteúdo existencial pode se evidenciar
somente para alguns (mas não para todos os) pacientes, em alguns (mas
não em todos os) estágios da terapia. De fato, o terapeuta efi ciente nunca deveria
tentar forçar uma discussão em nenhum terreno de conteúdo: a terapia não deve
ser impulsionada pela teoria, mas sim pelo relacionamento.
Mas se essas mesmas sessões forem observadas com o intuito de se identifi -
car algum processo característico derivado de uma orientação existencial, surgirá
uma história inteiramente outra. Uma sensibilidade intensifi cada para as questões
existenciais infl uencia profundamente a natureza do relacionamento entre terapeuta
e paciente e afeta individualmente cada sessão terapêutica.
Eu mesmo fi co surpreso pela forma particular que este livro assumiu. Nunca
imaginei que seria autor de um livro contendo uma seqüência de dicas para terapeutas.
Contudo, retrospectivamente, sei quando foi o momento preciso em que
tudo começou. Há dois anos, depois de ver os jardins japoneses de Huntington,
em Pasadena, notei a exposição da Biblioteca Huntington sobre os livros do Renascimento
mais vendidos na Grã-Bretanha e entrei para visitá-la. Três dos dez
volumes em exposição eram livros de “dicas” enumeradas – sobre criação de animais,
costura, jardinagem. O que chamou minha atenção foi que, mesmo naquela
época, há centenas de anos, logo depois da introdução das prensas, as listas de
dicas atraíam a atenção das multidões.
Anos atrás, tratei uma escritora que, tendo perdido o vigor ao produzir dois
romances consecutivos, resolveu nunca mais assumir o compromisso de escrever
outro livro até que ela fosse mordida por uma idéia. Ri disfarçadamente com o
comentário dela, mas realmente não compreendi o que ela queria dizer até aquele
momento na Biblioteca Huntington, em que a idéia de um livro de dicas me
capturou. Imediatamente, resolvi deixar de lado outros projetos de textos para
começar a saquear minhas anotações clínicas e meus diários e escrever uma carta
aberta a terapeutas principiantes.
O fantasma de Rainer Maria Rilke pairou sobre a redação deste livro. Pouco
antes da minha experiência na Biblioteca Huntington, eu tinha relido as suas
Cartas a um jovem poeta e tentei conscientemente me elevar aos padrões dele de
honestidade, abrangência e generosidade de espírito.
Os conselhos neste livro são extraídos das anotações de quarenta e cinco anos
de prática clínica. São uma mistura idiossincrática de idéias e técnicas que considerei
úteis em meu trabalho. Essas idéias são tão pessoais, dogmáticas e, ocasionalmente,
originais que é improvável que o leitor as encontre em qualquer outro
lugar. Portanto, este livro não tem de forma alguma a intenção de ser um manual
sistemático; desejo, pelo contrário, que seja um complemento a um programa
abrangente de treinamento. Selecionei as oitenta e cinco categorias neste livro
aleatoriamente, guiado mais pela paixão pela tarefa do que por qualquer outra
ordem ou sistema particular. Comecei com uma lista de mais de duzentos textos
de conselhos e, no fi nal, aparei aqueles pelos quais senti bem pouco entusiasmo.
Um outro fator infl uenciou minha seleção destes oitenta e cinco itens. Meus
romances e contos recentes contêm muitas descrições de procedimentos terapêuticos
que considerei úteis em meu trabalho clínico, entretanto, uma vez
que a minha fi cção possui um tom cômico, freqüentemente burlesco, não fi ca
muito claro para muitos leitores se falo com seriedade sobre os procedimentos
terapêuticos que descrevo. Os desafi os da terapia me oferece a oportunidade de
esclarecimento.
Sendo uma coleção de detalhes práticos de intervenções ou de afi rmativas
prediletas, este volume se alonga na técnica e é conciso na teoria. Os leitores que
estiverem em busca de uma base mais teórica poderão ler os meus textos Existential
Psychotherapy e Th e Th eory and Practice of Group Psychotherapy, os livros que
fundamentam esta obra.
Tendo formação em medicina e psiquiatria, acostumei-me ao termo “paciente”
(do latim patiens – aquele que sofre ou suporta), mas uso-o como sinônimo
de “cliente”, a denominação comum das tradições da psicologia e do aconselhamento.
Para alguns, o termo “paciente” sugere uma postura de terapeuta distante,
desinteressada, não-participativa, autoritária. Mas prossiga a leitura – pretendo
incentivar ao máximo um relacionamento terapêutico baseado em compromisso,
franqueza e igualitarismo.
Muitos livros, inclusive o meu, consistem em um número limitado de pontos
substantivos e a partir deles em um “recheio” considerável para ligar os pontos de
uma maneira elegante. Por eu ter selecionado um grande número de sugestões,
muitos deles autônomos, e ter omitido muito texto de “recheio” e transições, o
texto terá uma qualidade episódica, oscilante.
Embora eu tenha selecionado essas sugestões casualmente e tenha a expectativa
de que muitos leitores saboreiem estas contribuições de uma maneira assistemática,
tentei, a posteriori, agrupá-las de uma maneira mais conveniente para
o leitor.
A primeira seção (1–40) aborda a natureza do relacionamento terapeuta-paciente,
com uma ênfase particular no aqui-e-agora, no uso do self pelo terapeuta
e na auto-revelação do terapeuta.
A seção seguinte (41–51) muda do processo para o conteúdo e sugere métodos
de exploração das preocupações supremas da morte, do signifi cado na vida e da
liberdade (abrangendo responsabilidade e decisão).
A terceira seção (52–76) aborda uma variedade de questões que têm origem
na conduta cotidiana da terapia.
Na quarta seção (77–83), abordo a utilidade dos sonhos na terapia.
A última seção (84–85) discute os riscos e privilégios de ser um terapeuta.
Este texto está salpicado de muitas das minhas frases e intervenções específi -
cas preferidas. Ao mesmo tempo, estimulo a espontaneidade e criatividade. Portanto,
não considero que minhas intervenções idiossincráticas formem uma receita
específi ca de procedimentos; elas representam minha própria perspectiva e minha
tentativa de explorar minha intimidade para encontrar meu próprio estilo e voz.
Muitos estudantes acharão que outras posturas teóricas e estilos técnicos se revelarão
mais compatíveis com eles. Os conselhos deste livro derivam de minha
prática clínica com pacientes com produção moderadamente alta e alta (e não
aqueles que são psicóticos ou acentuadamente incapacitados), freqüentando as
sessões uma ou, mais comumente, duas vezes por semana, desde alguns meses a
dois ou três anos. Minhas metas terapêuticas com esses pacientes são ambiciosas:
além da supressão dos sintomas e alívio da dor, esforço-me para facilitar o crescimento
pessoal e uma mudança básica de personalidade. Sei que muitos dos meus
leitores poderão estar numa situação clínica diferente: um cenário diferente com
uma população diferente de pacientes e uma duração menor da terapia. Ainda assim,
tenho a esperança de que os leitores encontrem sua própria maneira criativa
de adaptar e aplicar o que aprendi à sua situação particular de trabalho.

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