15 dezembro 2005

Assassinatos na Academia Brasileira de Letras


Jô Soares, que dispensa aprresentações chega trazendo e reinventando mais uma vez a fórmula de misturar realidade e ficção: "Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, seu mais novo livro. Segue o primeiro capitulo:

... ele sabia que faltava pouco para que a vingança enchesse seu coração de alegria. Repetiu mentalmente o velho provérbio siciliano "La vendetta è un piatto che va servito freddo", até que o ritmo da frase se mesclou com a cadência da respiração. Sabia que só a morte lavaria a honra ofendida. Por duas vezes fora vilipendiado, humilhado. A notícia da recusa, glosada até nos matutinos populares, tornara-o motivo de chacota entre o poviléu. Os falsos amigos comentavam sotto voce, entre sorrisos sarcásticos: "Ele vai tentar de novo e novamente não será aceito. 'Jamais deux sans trois...'". Não lhes daria esse gosto. Seria ele a rir por último. O desagravo tomaria contornos de tragédia. Da sua formação francesa veio-lhe uma frase de Racine: "La vengeance trop faible attire un second crime". "A vingança fraca em demasia atrai um segundo crime." Neste caso não haveria revide. Seus ofensores pagariam com a vida o ultraje. Pensou na perfeita justiça da vindicta: "Enxovalharam-me juntos, morrerão juntos. Na mesma hora". Não foi difícil o acesso à copa, onde se preparavam os quitutes. Como a famulagem não o conhecia, disfarçou-se com o uniforme dos garçons, passando-se por um dos serviçais ajornalados. Trazia o veneno no frasco de prata em que de hábito levava o conhaque. Adicionou o líquido à água quente do chá. A poção libertária faria efeito em poucos segundos. "Finita la commedia!" Divertiu-se vislumbrando a contradição no ca-beçalho dos diários do dia seguinte: MORTOS TODOS OS IMORTAIS. Sim. Os quarenta Imortais da Academia. Os mesmos quarenta que haviam recusado seu ingresso na Casa de Machado de Assis, frustrando um sonho acalentado desde a infância.


O PAIZ
Extraordinário o successo alcançado pelo último livro do senador Belizário Bezerra, o excellente "Assassinatos na Academia Brasileira de Letras". Como já assinalou esta columna, a obra conta, com muito humor e verve, a história de um mallogrado poeta decidido a vingar-se dos membros da Academia Brasileira de Letras, pois, por duas vêzes, os illustres acadêmicos negaram-lhe aquelles tão cobiçados votos que o acclamariam como "Immortal".

Irônicamente, êste trabalho, que vem coroar uma carreira illuminada por innúmeros successos, deve credenciar inda mais o inspirado auctor para occupar uma cadeira na prestigiosa instituição. Aliás, a de número déz, uma das mais attrahentes daquelle Olympo literário, et pour cause: a cadeira número déz teve Ruy Barbosa como fundador. Escriptor de estylo atrevido e innovador, Bezerra é também um dos políticos mais influentes da República, tendo sido eleito successivamente senador por Pernambuco.

Belizário Bezerra mudar-se-á, nêste mez, do Grande Hotel para o recém-inaugurado hotel Copacabana Palace.

Supplemento Literário
RIO DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA, 31 DE OUTUBRO DE 1923

Quarta-feira, 2 de abril de 1924
ANTEVÉSPERA DA IMORTALIZAÇÃO

Ao sair do chuveiro às nove horas da manhã, o senador Belizário Bezerra examinou-se no grande espelho do banheiro da suíte no último andar do Copacabana. Aprovou com um sorriso a imagem que o cristal bisotado lhe devolvia: apesar dos cinqüenta anos, a ginástica sueca praticada diariamente deixava-o com aparência de quarenta. Tinha a convicção de que, além do seu barbeiro, ninguém notava que devia os cabelos negros como azeviche a Auréole, uma nova tinta inventada por Eugène Schueller, fundador da L'Oréal, que ele comprava regularmente em Paris.
Penteava-os para trás, imaculados, com brilhantina Yardley. Não fosse o sotaque carregado e o indefectível terno branco de linho S-120, passaria por um legítimo latin lover do cinema americano. Bem merecera o apelido de Rodolfo Valentino da Zona da Mata. Seus inimigos abreviaram a alcunha para Valentino da Zona. Todos sabiam que Belizário freqüentava os salões das cafetinas mais requintadas do Rio de Janeiro. Ninguém tinha coragem de pronunciar a forma reduzida do apelido na presença dele. O senador era valente e jamais se separava da sua Parabellum, nem mesmo nas sessões do Senado. Sua família, dedicada ao cultivo da cana e às usinas de açúcar desde os tempos de Maurício de Nassau, era proprietária de metade da Zona da Mata pernambucana, devastada pela agricultura canavieira, e exercia influência política sobre a outra metade. A valentia dos Bezerra em Pernambuco era lendária, forjada ainda na luta contra os holandeses.
Considerado por muitos o melhor partido do Rio de Janeiro, eram quase audíveis os suspiros das moças de sociedade quando, nos saraus, ele dizia alguns poemas. Vaidoso como poucos, Belizário nunca se furtava a declamar seus versos pouco inspirados. Diga-se a bem da verdade que os dotes literários dele não chegavam a causar impressão. Sem sua fortuna e influência política, jamais teria sido publicado.
O sucesso de vendas dos livros era creditado, em grande parte, ao próprio autor, que comprava várias edições por intermédio dos secretários e mandava distribuir entre os empregados das suas herdades e usinas. Noventa por cento dos peões eram analfabetos, mas guardavam os livros num relicário ao lado da Bíblia Sagrada.
Mesmo assim, o acadêmico pernambucano Euzébio Fernandes, cujos dotes de poeta só se igualavam aos de articulador, garantira a eleição do senador para a Academia. O poder dos Bezerra estendia-se muito além das fronteiras de Pernambuco. Eram freqüentes as visitas que Belizário fazia ao presidente Arthur Bernardes quando saía do Lamas depois do jantar, indo a pé do restaurante, no largo do Machado, até o palácio do Catete. Ademais, a quantia que doara para ajudar nas instalações da nova sede no Petit Trianon suavizara a imparcialidade dos acadêmicos. O fato de tratar-se da cadeira número 10, que pertencera a Ruy Barbosa, um dos mais notáveis membros fundadores, acrescia honra maior ao evento.
Belizário Bezerra andava esfuziante como um adolescente. Vestiu um dos quarenta ternos brancos do guarda-roupa e saiu do hotel no seu Hispano-Suiza conversível pela avenida Atlântica, assobiando um frevo do último Carnaval de Olinda.

VAIDADE DAS VAIDADES, TUDO É VAIDADE!

O destino do senador era a oficina do alfaiate Camilo Rapozo, no centro da cidade, para os últimos retoques no fardão que usaria dali a dois dias, na noite da posse. O alfaiate esperava-o desde segunda-feira, mas o senador só chegara do Nordeste na terça. Rapozo era o último representante do ateliê de sua família: filho único, não pretendia renunciar à solteirice apenas para perpetuar através da prole a alfaiataria fundada por seu tataravô António Gomes Rapozo, em Lisboa, artífice de cortes e costuras da corte portuguesa e alfaiate do marquês de Pombal. O avô, Apolinário Rapozo, recebera o título de artífice-alfaiatemor de Sua Majestade e chegara ao Brasil trazido por d. João VI, que não lhe dispensava os talentos.
Aos trinta e seis anos, Camilo era um homem musculoso, de tez morena e olhos oblongos, herança dos mouros que ocuparam a península Ibérica. A cabeça, raspada à navalha, ressaltava-lhe o formato oval do rosto. Durante anos, o topo fora parcialmente coberto por poucos cabelos, que ele deixava crescer de um lado até a altura dos ombros e penteava para o outro, por cima do crânio, numa vã tentativa de ocultar a calvície precoce. Fixava o laborioso emaranhado com gomina argentina, que, quando seca, transformava as ralas madeixas numa carapaça negra. O vento era seu pior inimigo. Certa vez, quando se dirigia a pé para casa, uma ventania levantou o tampo construído a duras penas com os fios escassos. Foi nesse momento aviltante que o alfaiate resolveu se livrar do inútil penteado.
Sua maior vaidade era a unha desproporcionalmente longa no dedo mindinho da mão direita. Havia um motivo profissional para aquela discrepância: a unha era uma ferramenta de trabalho, pontiaguda como um pequeno punhal. Rapozo seguia o hábito dos grandes alfaiates de Lisboa, que a usavam para marcar correções no pano quando da primeira prova. Com a concisão de um compasso, ele traçava cír-culos perfeitos, calcando a ponta afiada na trama dos tecidos ingleses. Camilo conhecia os segredos da confecção de uniformes, fardões, redingotes e casacas, segredos que vinham sendo transmitidos por sua família havia dois séculos. Pela prática do ofício, sabia, como poucos, quais os vieses e outros cortes oblíquos que davam um caimento impecável à camurça de lã inglesa do fardão.
Incomparáveis as costuras com fio de ouro francês, o remate dos galões, o leve pregueado das passamanarias, o conforto provocado pelo recorte milimétrico das cavas e, o mais difícil, o peitilho encimado por um colarinho rígido, soberbo, porém inacreditavelmente confortável. Não menos importante era a exatidão do gancho das calças, com folga aconchegante à esquerda e o cós na altura certa. Conhecendo o poder calórico dos quitutes do chá das cinco, o alfaiate de mãos mágicas conseguia esconder, sem prejudicar o corte e os ornamentos, sobras de fazenda dobradas em plissês e bainhas falsas, o que permitia alargar a vestimenta acompanhando a corpulência sedentária dos imortais.
Tantos talentos transformaram Camilo Rapozo no alfaiate oficial da Academia Brasileira de Letras.
ALFAIATARIA DEDAL DE OURO A PROVA DE UM HÁBITO QUE FAZ O MONGE
Belizário Bezerra apertou a campainha, e Camilo, numa reverência, abriu a porta para o celebrado cliente. O alfaiate vestia-se com apuro e trazia presa ao pulso a tradicional almofadinha povoada por dezenas de alfinetes. Empunhava um exemplar do Assassinatos na Academia Brasileira de Letras.
- Será que, antes de experimentar o fardão, o senador pode me dar um autógrafo? - pediu Rapozo, correndo, com livro e caneta, atrás de Belizário, que se dirigia a passos largos para a cabine de prova. Indiferente, sem dizer uma palavra, Bezerra rabiscou seu nome numa caligrafia ilegível.
- Vai demorar? - perguntou. - Tenho reuniões no Senado.
- Não, não! Vou já buscar. Está belíssimo, uma obra-prima! Também, o físico do senador ajuda muito... - disse o alfaiate, adulador.
Largou a caneta e o livro no balcão, e seguiu, com passos miúdos, até os fundos da alfaiataria. Voltou de lá trazendo nos braços o fardão como se fosse a capamagna do papa.
- Nem vai precisar de retoques. É de longe o meu melhor trabalho.
No afã de se vestir, Bezerra pôs logo a parte superior, o que provocou o risinho dissimulado do alfaiate.
Vendo-se no espelho, Belizário percebeu o motivo da chacota: lá estava ele de cuecas e imortal da cintura para cima.
- Vamos com isso que eu não tenho o dia todo - disparou, irritado.
Realmente nada havia a corrigir. A vestimenta sublinhava o porte altivo de Belizário Bezerra. Embevecido, o escrevedor imaginava-se aceitando a nomeação num constrangimento simulado. Aproveitando o momento de enlevo do senador, Camilo atreveu-se:
- E quanto ao pagamento, Imortal? - perguntou, tratando-o pelo título ainda não oficializado. - Será que tarda?
- Você sabe muito bem que é costume o governo do estado natal do escritor oferecer o fardão. Não me meto nisso - respondeu Belizário rispidamente.
Óbvio que Bezerra poderia pagar o vestuário. Embora caríssimo, não era mais do que ele gastava numa noitada com os amigos nos bordéis de luxo das Laranjeiras. Se não o fazia, era apenas por uma questão de vaidade. Era praxe, uma lei não escrita: o estado do imortal morria com a conta do alfaiate. Só que Rapozo não se conformava. Já lhe deviam vários fardões, com a desculpa de que a verba sairia dos cofres públicos.
- Tenha paciência, seu Rapozo! - diziam. - E a glória de ser o homem que veste a Academia?
- Glória não enche a barriga dos meus filhos - retrucava Camilo, que não os tinha nem pretendia tê-los.
O senador dirigiu-se para a saída.
- Entregue amanhã no meu hotel.
Enquanto o alfaiate abria a porta pensando no seu provável prejuízo, Bezerra deu-lhe um envelope. Rapozo animou-se, antevendo a gorda propina. - É um convite para a posse - explicou, magnânimo, o futuro imortal, estendendo o cartão.
- Venha ao hotel antes pra ajudar a me vestir.
- Claro, Excelência. Obrigado, Excelência...
Ao cruzar a soleira, Belizário virou-se rapidamente.
- Ah! Antes que eu me esqueça. - Inclinando-se, passou a mão na cabeça lisa do alfaiate. - É pra dar sorte... - esclareceu, e saiu batendo a porta. O imperturbável mestre alfaiate suspirou, engolindo mais uma vez a humilhação que sentia quando o usavam como amuleto. Sim, porque Camilo Rapozo era anão.
Filho, neto e bisneto de anões alfaiates, todos perfeitos, como os sete da Branca de Neve.

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